quinta-feira, 3 de julho de 2014

Julia: Capa do Extra


Julia Lemmertz mergulhou no mar de contradições de sua personagem e, reconhece, sai dele diferente. Não se afogou. Ao contrário, aceitou o mistério de ser Helena, a dor e a delícia. Apesar do percurso errante da protagonista de “Em família”, do tipo “ame-a ou deixa-a”, a atriz não fez desta conversa um instrumento de lamentações nem falou em desafio, essa palavra de luxo — uma espécie de resposta-padrão para atores descreverem trabalhos difíceis. Inteira no papel, defendeu seu drama, e sobressaiu ao quebrar a regra, surgindo de calcinha e sutiã quando Helena, numa bebedeira até então improvável, seduz Virgílio (Humberto Martins). Na ficção, a atitude levou à noite de amor do casal, antes brigado. Fora dela, trouxe, enfim, o calor do público.

— Quando li aquilo, falei: “Ai, meu Deus, me ajude”. Tentei fazer uma aula de pilates um dia antes, mas não deu. Escolhi a calcinha e o sutiã que ficavam melhor para mim, e combinei que não teria essa coisa de ficar dando voltas — confirma Julia sobre o momento de malícia, um dos assuntos mais comentados do Twitter quando foi exibido: — Se teve uma cena em que me diverti foi essa. Ela passou a história toda sofrendo e, ali, era uma comédia romântica. Sabia que ia causar uma celeuma.
De repente, não mais que de repente, o corpo da atriz ficou em primeiro plano. E Helena, cujo o passado a mantinha refém de uma ciranda de amargura, desabrocha, com faíscas de desejo. A boa repercussão da cena abriu caminho para uma outra, ainda não exibida, mas já escrita por Manoel Carlos, que deixa um depoimento no fim do texto. Nela, à flor da pele, o casal transa no haras de Shirley (Vivianne Pasmanter):


— Isso daí eu já acho forçação de barra, porque eles estão de bota, calça cumprida. Não rola. A gente sempre dá uma dichavada. Vai ser um beijo, um amasso. Não é uma cena escrita como a outra, essa vai junto no decorrer da trama. Uma cena de amor na relva não vai rolar. Não é para tanto.

A despeito da função dramática, as sequências formam a moldura ideal para realçar a boa forma da atriz, de 51 anos. Mas a luz jogada sobre o assunto é prontamente dissipada. Sempre com respostas em que firmeza e singeleza convivem sem estridência, ela desmonta a vaidade e, diante do quebra-cabeça proposto, destaca a peça fundamental.



— Claro que você quer se sentir bonita, quer estar bem. Mas isso não vem à frente de um trabalho. Adoro que as pessoas achem que estou ótima. E eu estou bem mesmo. Mas estou bem para mim. Não foi: “Ah, vou ficar pelada na novela e preciso estar bem”. Nunca pensei que isso fosse acontecer, mas preciso estar pronta. Estou viva, com tesão, querendo fazer um trabalho legal. Sou grata por tudo. Meu corpo é meu instrumento real, mas não vou ficar assim o resto da vida. Não sou o Dorian Gray (personagem do livro do escritor irlandês Oscar Wilde), um retrato na parede que não envelhece.

Não se trata de uma ideia soprada ao acaso. O pensamento sobre o correr do tempo e as marcas carregadas por ele conduzem a atriz ao desejo de um futuro pleno e muito vivo: envelhecer sem perder a ternura, sem perder a expressão. Principalmente, sem se perder. Satisfeita aos 50, sem plástica ou botox, mas com mais de 30 anos de meditação na bagagem, amansando os dias difíceis, Julia quer da velhice a coragem para os novos trabalhos; deixa de lado, assim, o reflexo da neurose, as brigas com a idade em frente ao espelho.

(...) 

Perto do fim — a novela termina dia 18 de julho — a sina de ser torta na vida parece vestir Helena com propriedade. E não é esse mesmo o feitiço dela? Maneco já havia alertado sobre sua heroína: “Todas foram julgadas com muito rigor”. Talvez numa opção lúdica de autopreservação, Julia afirma não ter acompanhado nas redes sociais os comentários, nem sempre favoráveis, em torno da trama.

— É difícil você gostar de uma personagem que todo mundo está contra, o marido, a mãe e a filha. Ela é quase uma Geni (a trágica personagem de Nelson Rodrigues). Ela não dá o braço a torcer, e isso foi uma coisa que me ajudou, porque sempre achei que ela tinha razão. Acho um absurdo essa história do Laerte (Gabriel Braga Nunes) ficar impune, que tudo bem Luiza (Bruna Marquezine) ficar com ele. Que filha é essa que casa com o homem que fez aquilo com o pai, que causou aquela dor na mãe? Eu entendo Helena cem por cento — destaca a atriz, que comenta a reação da audiência:

 — Não fiquei me atendo a isso. Tentei dar coerência à personagem com a minha interpretação, juntando os cacos emocionais dela. Pelo menos não me tacaram pedra. Não senti uma coisa destrutiva, que não gostaram de mim pessoalmente ou do meu trabalho. Sinto que as pessoas 
tiveram um carinho.
Cercada de laços afetivos fortes, “Em família” estreou como uma saudação a Lilian Lemmertz, sua mãe e primeira Helena (em “Baila comigo’’, de 1981), e anunciava a última novela de Maneco. Julia percebeu que construir uma nova mulher significaria, entre outras coisas, se desvencilhar dessas referências.

— Sei da homenagem a minha mãe e ao Maneco. Mas sou eu, é para honrar o meu trabalho que a novela é importante. No frigir dos ovos, quando se liga a TV às 21h, é minha cara que está ali. O ator é transparente, dá para ver se ele não está a fim. Entrei com essa emoção toda, mas depois, vi que tinha que reafirmar a atriz que pensava ser, o porquê estou na profissão, para chegar aqui às 7h e sair às 21h e não cansar — salienta ela, que bancou sozinha a festa do capítulo 100 da trama para equipe e elenco.
Seus sentimentos de ordem — algo entre o tesão absoluto e a atenção constante — a mantiveram não somente imersa no labirinto de ser Helena, mas a colocaram como porta-voz da novela, uma operária a serviço do bem-estar da trama. O exercício envolve decorar e gravar, conceder entrevistas, mas também unir, aconchegar, brigar pela obra. De opiniões fortes, Julia analisa o caminho percorrido por “Em família”:



— Novela tem que ter história, drama, romance. Não dá para achar que é clipe e cenas de ação, porque isso é outra coisa. O público quer ver folhetim. O Maneco resistiu muito em não responder a essas críticas. Ele tinha uma novela na cabeça, boa ou ruim, certa ou errada, era um novelão. Talvez se tivessem deixado ele fazer... Essa coisa de grupo de discussão, conserta dali, muda de lá, acaba que você descaracteriza um trabalho. Mas não adianta falar sobre isso. Fizemos a melhor novela que podíamos fazer. Entrei tão imbuída de coisas boas que me recusei a largar esse bastão da positividade.

Essa natureza conciliadora, a busca pela harmonia, se apresenta como um traço marcante da atriz. Se as tem, Julia tratou de camuflar suas excentricidades. Não banca a estrela, embora tenha porte. Uma ida ao Projac comprova isso. No caminho para fazer as fotos desta reportagem, a atriz ia sendo abordada, uma breve prosa com Marcius Melhem, um aceno para Isis Valverde e Reynaldo Gianecchini, até uma declaração de Ricardo Blat: “Julinha, eu te amo”, gritou o ator, enquanto se deslocava num carrinho, chamando a atenção da atriz. O jeito dócil, porém, não trai sua natureza reservada. Casada há 21 anos com Alexandre Borges, Julia procura preservar ao máximo o relacionamento com o ator, eventualmente bombardeado por supostas crises.

— As pessoas se preocupam mais com nosso casamento do que a gente. Nosso casamento é para a gente, sempre foi. Se existe até hoje, é porque ele é bom. Não há segredos, é o dia a dia, você ter 
sonhos renovados, identificações, vontade de estar junto, ter amor, acima de tudo. É difícil você não pensar em criar uma coisa para sempre, mas o para sempre é o agora. E quando você vê, passaram 20 anos. A gente sabe que pertence a um lugar comum. Mas não fazemos planos para daqui a 20 anos. Espero estar viva, em primeiro lugar. A gente nem pensa assim porque é muito longe — explica Julia, que protagonizou com Alexandre histórias intensas, verdadeiras discussões de relacionamento, na peça “Eu sei que vou te amar” (1994) e no filme “Um copo de cólera” (1999): — A gente estava vivendo um momento tão incrível, o início do nosso relacionamento, uma outra vibe, que a gente podia fazer qualquer coisa, que nada daquilo importava. É o grande barato de ser ator: você viver o ódio, a loucura, e estar vivendo o idílio na vida pessoal. Depois que o Miguel nasceu (o filho de 14 anos do casal), a gente passou a fazer menos coisas juntos, até para se render. Enquanto um estava trabalhando, o outro estava em casa.

A maternidade, aliás, revela muito sobre a atriz. Luiza Lemmertz (do seu relacionamento com o empresário Álvaro Osório), recorda, agora com graça, seu período de adolescência. A fase de inquietações, foi para ela também o momento de se trancar num universo particular, ao qual a mãe não tinha acesso. Coube a Julia exercitar a paciência e o amor devotado.


— Fiquei muito comigo, porque precisava descobrir as minhas coisas. Fiquei silenciosa, quieta, chata. E ela, tadinha, tentava de tudo, queria saber o que estava acontecendo. Não dava certo (risos). Essa coisa de mãe e filha, duas mulheres amigas, só aconteceu quando fui para São Paulo (aos 20 anos) — lembra Luiza, de 26, que compartilha a mesma profissão da mãe e tem o mesmo nome da personagem de Bruna Marquezine na trama: — Rolou muito de me perguntarem por que eu não fazia a novela. Era chato de ouvir. Mas não consigo enxergar a gente na mesma situação da novela, não tem nada a ver com a gente.
Mas dividir a cena com a mãe é um “desejo alucinante” e que começa a ser desenhado. Ainda não aconteceu, segundo Luiza, devido ao seu processo de atriz ainda em construção e por falta de tempo. E, sim, é preciso achar o texto! Do seu lado, Julia se prepara para se despedir de Helena, deixá-la em seu mar de contradições (boiando, quem sabe) e nadar em outras águas. No dia a dia, significa, entre outras coisas, curtir as férias do Miguel.

— Como se diz no futebol, vou tirar o meu time de campo — afirma Julia, que entrega, sem titubear: — Encararia outra protagonista. Depois dessa, encaro qualquer coisa. Comecei essa novela me atirando de um avião, a 12 mil pés, para não deixar dúvida que poderia fazer. É isso: você tem que se atirar mesmo.

‘Quando pensei na última Helena me lembrei da primeira’

‘Julia é uma atriz completa. Transita, com a mesma desenvoltura, no cinema, no teatro e na TV. Colhe o sucesso nas três atividades, aparentemente idênticas, mas que guardam uma sensível diferença na utilização da voz e do corpo. É comum ouvirmos alguém criticar uma atriz num filme, dizendo ‘ela está muito teatral’. E o teatro — pai e mãe da arte de representar — passa a ser citado como um defeito. Por que isso acontece? Pela má utilização das ferramentas que cada uma das funções exige. Não é fácil alcançar esse equilibrio. Julia alcança. E quando a vemos no teatro, no cinema ou na TV, percebemos sua intimidade com os deuses que abençoam e protegem os grandes artistas. Não basta o talento. O que faz a diferença é a bagagem cultural. E no caso da Julia, a que se traz do berço, não fosse ela filha de Lilian Lemmertz e Lineu Dias, dois dos mais representativos nomes da arte de representar. Por tudo isso, quando pensei numa última Helena fechando o ciclo de oito protagonistas, obviamente me lembrei da primeira, a que criou comigo o personagem: Lilian Lemmertz, em ‘Baila comigo’. Por todas essas razões o nome da Julia surgiu naturalmente para encabeçar o elenco de ‘Em família’. Fiz o melhor que pude, mas sei que ainda fiquei devendo muito a essa grande atriz. Que ela me perdoe”. Manoel Carlos

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